Secretaria Municipal de Educação de Londrina
Programa Professor Mediador Facilitador Escolar e Comunitário
Texto DUTRA, Martinha Clarete martinhacdu@gmail.com

Por uma Londrina educadora e inclusiva

A Organização das Nações Unidas – ONU, por meio da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e demais Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos, proclamou que toda pessoa faz jus a todos os direitos e liberdades ali estabelecidos, sem distinção de qualquer espécie.

Ao ratificarem esses tratados, os Estados Partes da ONU reconheceram a dignidade e o valor inerentes e os direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana como o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. Além disso, reafirmaram a universalidade, a indivisibilidade, a interdependência e a inter-relação de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, bem como a necessidade de que todas as pessoas tenham a garantia de poder desfrutá-los plenamente, sem discriminação.

Para tanto, foram firmados o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias.

A partir desses princípios consagrados nos documentos internacionais de direitos humanos, é possível compreender o porquê da classificação de tais direitos em direitos individuais, difusos e coletivos. De modo geral, os indivíduos são titulares dos direitos humanos, sobretudo, do direito à liberdade de expressão, de culto religioso, de ir e vir com autonomia e segurança, de privacidade e de proteção legal, que são exemplos de direitos civis. Analogamente, os direitos políticos também são classificados como direitos individuais, pois, todas as pessoas devem ser livres para se associarem, para participarem dos governos, votarem e serem votadas.

Os direitos difusos dizem respeito a toda humanidade, sendo de responsabilidade da sociedade em geral. Nessa categoria, está o direito à paz, à fraternidade, ao progresso sustentável e o direito dos povos à autodeterminação.

Os direitos coletivos são evocados quando não há igualdade entre todos os indivíduos, o que revela iminente violação dos direitos civis e políticos de parte da população, cabendo ao Estado proteger as coletividades vulneráveis.

Sendo assim, a condição de desigualdade social é considerada uma forma de violação dos direitos humanos, já que priva determinadas populações do direito à educação, à saúde, à assistência social, à moradia, ao trabalho e à previdência social, configurando-se em um atentado aos direitos sociais. A pobreza também representa uma forma de violência contra os direitos econômicos das populações que nela se encontram, pois, têm baixo acesso ao trabalho formal e quando o tem, é pouco valorizado, resultando em uma remuneração injusta e insuficiente para viver com dignidade.

A situação de pobreza é, sem dúvida, geradora do não direito ao direito cultural, uma vez que os pobres têm dificuldade para preservar o patrimônio cultural da sua comunidade, assim como, têm a fruição desses bens restrita. Os bens e produtos culturais produzidos pela humanidade permanecem como patrimônio privado das elites do país, justificando, assim, a necessidade da definição, formulação e implementação de políticas públicas que garantam os direitos sociais, econômicos e políticos das populações em desvantagem na sociedade. O Estado é responsável pela proteção dessa população, por meio do fortalecimento do Sistema Único de Assistência Social, do Sistema Único de Saúde, dos sistemas públicos de educação, cultura, transporte e das políticas de trabalho e emprego. Quando parte da população percebe-se desprovida das condições básicas de vida, ocorre o esgarçamento das relações sociais, decorrente do sentimento de desproteção e de exclusão. Diante de tal fenômeno, é inevitável questionar: somos iguais no exercício dos direitos humanos? Será que uns são mais “iguais” que outros?

Para pensar a respeito dessas indagações, é mister notar que a meritocracia é irmã gêmea do privilégio, contrapondo o mito de que somos todos iguais. Se o capital cultural é definidor do desenvolvimento pessoal, profissional, político e econômico de uma classe social, presume-se que os integrantes dessa classe dominarão os espaços de poder político e financeiro da sociedade.

Às classes populares, resta a subalternidade, pois, estão desprovidas de capital cultural de prestígio. A ralé, segundo Jessé Souza, “[…] é a classe dos perdedores, dos analfabetos funcionais, os desassistidos pela escola, sem trabalho formal. Dedica-se ao trabalho precário. (2018, p.22).

Aprofundando a discussão proposta por Jessé de Souza, percebe-se que quando o sistema favorece uns em detrimento de outros, evidencia-se o fato de que uns atingem seus objetivos e outros não. Nesse momento, coloca-se em xeque a máxima de que a liberdade como liberdade igual é a mesma para todos. Objetivamente, as assimetrias e as contingências inerentes à situação social, cultural, política e econômica vivenciadas pelas pessoas, interferem na plena fruição dos seus direitos civis, políticos, econômicos e sociais.

Segundo John Rawls, esse desequilíbrio foi naturalizado e ganhou o nome de sistema meritocrático, bastante louvado em nossos dias (1997, p. 253).

Qual é a concepção de justiça embutida na prática meritocrática? Será que Deus teria posto ouro na alma dos governantes, prata na dos guerreiros e ferro na dos artesãos para garantir uma boa ordem? (RANCIÈRE, 2014, p. 45). Considerando que os seres humanos tendem a aderir a iniciativas que promovem seu próprio bem, seria perfeitamente plausível supor que, se todos estivessem convencidos de que algo os beneficiaria indistintamente, haveria colaboração de todos sem reservas. No sistema meritocrático, não há garantia de que todos possam se beneficiar. Para que seja implementado, é preciso persuadir os que provavelmente não se beneficiarão do sistema a serem fiéis a ele, mesmo se isso custar a renúncia de suas perspectivas de vida, aceitando que uns levem vantagens em detrimento da maioria (RAWLS, 1997, p.218).

Partindo do entendimento de que a educação integra a estrutura básica de uma sociedade, é coerente afirmar que a escola reproduz o mito da meritocracia e contribui para que a classe social em desvantagem acredite que há justiça nesse mecanismo, legitimando e naturalizando as desigualdades sociais. Assim, os pobres continuam excluídos do sistema educacional, principalmente, dos níveis mais elevados de ensino, dos postos de trabalho que requerem qualificação técnica, dos espaços de decisão e de poder, além de serem culpados pelo seu mau fado. Enquanto os filhos e filhas das classes dominantes possuem tempo livre para se dedicarem à escolarização, bem como, gozam de todas as condições sociais e econômicas para usufruírem dos mais diversos bens e recursos disponíveis, os pobres precisam trabalhar desde a mais tenra idade e não contam com mínima estrutura para corresponderem às exigências da escola. O chamado conhecimento técnico fica concentrado nas classes sociais privilegiadas, motor do círculo vicioso da exclusão do berço ao túmulo.

Em se tratando de pessoas pobres, negras, indígenas, mulheres, LBTQIA+, com algum tipo de deficiência física, intelectual ou sensorial, ocorre uma superposição de desvantagens. Além das barreiras decorrentes da pobreza, essas pessoas também enfrentam os obstáculos oriundos da falta de acessibilidade, do preconceito e da exclusão. Nesse caso, são reduzidas aos inúmeros estigmas e suas possibilidades de interromper esse ciclo tornam-se diminutas.

Os estudos atuais demonstram que a concentração de renda é maior, principalmente, nos países onde esse abismo já é bastante grande. Como se não bastasse, a crise econômica atinge os mais vulneráveis. Desse modo, o futuro de uma criança está diretamente vinculado ao lugar onde nasce e à situação social e econômica de sua família. As consequências dessa desigualdade são as mais perversas, fazendo com que se perca a real dimensão do valor da vida.

Diante desse contexto de injustiça social, convém interrogar-nos:

– A instituição educacional reconhece a existência da pobreza?

– O currículo dialoga com a diferença e a desigualdade?

– Como a formação docente trata a pobreza, a diferença e a desigualdade social?

Organizada de modo hierárquico, a instituição escolar tende a ignorar o fenômeno da pobreza, na medida em que padroniza suas estratégias de ensino e desconsidera as especificidades educacionais dos educandos e educandas em situação de vulnerabilidade social.  A escolha de estratégias e práticas pedagógicas que pouco ou nada reconhecem e valorizam a diversidade humana presente na escola, perpetua e aprofunda as desigualdades existentes na sociedade.

A estrutura escolar naturaliza a exclusão social, revelada pelos indicadores de reprovação, evasão e abandono, assim como, pelo baixo tempo de escolaridade das classes populares e pela expressiva taxa de analfabetismo.

A cultura acadêmica modelada à imagem e semelhança das elites, forja o mito da meritocracia. Tudo é perfeitamente engendrado. Seus autores mantêm-se ocultos, descaracterizando-se o ato político em favor ou desfavor deste ou daquele grupo social. Se questionada, a escola diz não ser responsável pelas injustiças sociais, eximindo-se de enfrentá-las. De outra parte, para livrar-se da urgente necessidade de radical transformação, ratifica a crença na igualabilidade dos seres e de seus percursos educacionais.

Por sua vez, a formação inicial e continuada dos professores, salvo raras exceções, omite a função social da escola e tampouco tangencia seu papel produtor e reprodutor de violências.

A concepção do currículo parece debitar na conta do outro a culpa pela sua falta de alinhamento com o parâmetro estabelecido.

Ao reconhecer a pobreza, necessariamente, a escola deverá problematizar sua concepção e sua prática pedagógica. Nesse processo, terá que se perceber como autora de atos políticos de promoção da inclusão ou da exclusão social. Perceberá que a superação da situação de pobreza tem a ver com o enfrentamento das desigualdades e com a afirmação da diferença como valor humano singular.

A situação de vulnerabilidade social torna a vida escolar dessas crianças e adolescentes muito mais desafiadora. Os obstáculos enfrentados por elas são desproporcionais em relação às crianças não pobres.

Certamente, o enfrentamento da desigualdade social passa pela garantia do direito à diferença e pela superação da condição de pobreza. Os sistemas educacionais não podem se eximir desse contexto social, político e econômico. O Projeto Político Pedagógico da escola, em particular o seu currículo, torna-se uma ferramenta valiosa na demarcação das diferentes culturas, reveladoras de diversos saberes e valores morais. Educar em tempos sombrios torna-se, mais do que um ato político, um ato de resistência.

Como meio indutor para transformação dessa dura realidade, o papel do Estado é precioso. Torna-se urgente o engendramento de mecanismos efetivos de mudança por meio de trabalho articulado em sintonia com princípios que reconheçam e valorizem a igualdade na diferença.

Na esfera da gestão pública das políticas sociais, é possível induzir mudanças por meio da concepção de espaços educadores potentes. A institucionalização da mediação e da ação intersetorial na estrutura e funcionamento da Secretaria Municipal de Educação de Londrina – PR é um exemplo de medida governamental, adotada como mola propulsora na produção de alternativas de enfrentamento às desigualdades sociais nos territórios.

A formulação dessa política pública educacional respaldou-se na Lei Federal n° 8.060/1990, que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA; Lei Municipal N° 11.676/2012, que cria o Programa Escola de Pais; Resolução CNE/CP, n° 01/2012, que estabelece Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos; Lei Federal n° 13.185/2015 que institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying); Lei Federal N° 13431/2017, que Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei no 8.069/1990; Decreto Federal N° 9.603/2018, que regulamenta a Lei nº 13.431/2017; Lei Municipal N° 12.988/2019, que cria o Programa Professor Mediador Facilitador Escolar e Comunitário na rede municipal de educação de Londrina e na Instrução Normativa N° 06/2019, que orienta a implementação do plano  individual  de  atividades  pedagógicas complementares – PIAPC para compensação de carga horária escolar;

A função denominada Professor Mediador Facilitador Escolar e Comunitário – PMFEC sintetiza um conjunto de estratégias precursoras de mudanças fundamentais na relação do sistema educacional municipal com os demais serviços e órgãos que integram o Sistema de Garantia de Direitos da criança e do adolescente.

O PMFEC atua articuladamente com a Rede Intersetorial de Proteção à Criança e ao Adolescente no território de sua abrangência. É referência para o monitoramento, prevenção e enfrentamento dos casos de evasão ou abandono escolar, de abuso ou exploração sexual e demais formas de violência.

O PMFEC colabora com a resolução dos conflitos ocorridos no ambiente escolar, por meio de estratégias próprias da justiça restaurativa.

O PMFEC também apoia as unidades educacionais da rede municipal na elaboração e execução do plano  individual  de  atividades  pedagógicas complementares – PIAPC para compensação de carga horária escolar. Essa ação é uma estratégia pedagógica de prevenção à evasão e ao abandono escolar, visando à garantia do direito à educação e à proteção integral da criança e do adolescente.

O PIAPC é elaborado ao final do segundo mês de cada trimestre letivo, com a finalidade de compensar a carga horária dos estudantes com percentual de faltas acima de 25% do total de dias letivos.

O Programa Família Educadora é outra atribuição do PMFEC. Consiste na articulação da escola com a comunidade, visando à orientação das famílias quanto ao seu papel educador. Abrange rodas de conversa, círculos restaurativos, oficinas e intercâmbio de saberes nos diversos territórios de atuação da Rede Intersetorial de Proteção à Criança e ao Adolescente.

As unidades educacionais com o maior percentual de evasão escolar são convidadas a organizar círculos de diálogo com as famílias.

Por fim, o PMFEC é o profissional formado para realizar a Escuta Especializada das crianças e dos adolescentes matriculados na rede municipal de educação de Londrina. Instituída pela Lei Federal N° 13431/2017 e regulamentada pelo Decreto Federal N° 9.603/2018, caracteriza-se em instrumento de prevenção e enfrentamento aos diversos tipos de violência contra crianças e adolescentes, particularmente, nos casos de abuso e exploração sexual, assim como, violência física. Efetiva-se por intermédio de entrevista feita com base no protocolo próprio e exige formação necessária para evitar a revitimização da criança e do adolescente, como também, sua sugestionabilidade. Esse procedimento é realizado quando não houve relato espontâneo ou quando a revelação foi insuficiente.

Diante desse cenário, a Londrina que queremos para as próximas décadas, necessariamente, terá que ser educadora e inclusiva. Não deixará ninguém para trás e se ancorará em relações baseadas nos princípios da cultura de paz. Almejamos uma cidade acolhedora, capaz de estabelecer diálogo permanente entre as pessoas que habitam os diferentes espaços sociais, culturais, educacionais e políticos. Que os conflitos sirvam para fazer avançar rumo a soluções inovadoras, participativas, afetivas e humanizadoras. Que saibamos, cada vez mais, articular ações governamentais e não governamentais em favor dos segmentos mais vulnerabilizados da sociedade, de modo a assegurar o pleno acesso aos direitos humanos, sem hierarquizá-los, condicioná-los ou dispor deles.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Brasília, DF, Senado, 1988.
BRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – ONU. Diário Oficial da União, Brasília, 2009.
BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CP n° 01,de 30 de maio de 2012.
BRASIL. Lei 13.185 de 06 de novembro de 2015: Institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying). Diário Oficial da União. Brasília,  9 nov. 2015.   
BRASIL. Lei n° 13.431, de 4 de abril de 2017.
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DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Rio de Janeiro: UNIC, 2009 [1948]. Disponível em: <http://retratosdaescola.emnuvens.com.br/rde  > Acesso em:28 abr. 2021.
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RANCIÈRE, Jacques. Ainda se pode falar de democracia? Editora KKYM, 2014.
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